Decreto de calamidade impõe cortes e abala pilares culturais de Novo Hamburgo

Sem verbas do município, Carnaval teve sua realização comprometida e tradicional orquestra de sopros chegou a encerrar as atividades

Por Nadine Dilkin e Torriê Aliê

Os primeiros meses do novo governo do município de Novo Hamburgo (RS) surpreenderam a comunidade depois de o Executivo anunciar corte de gastos em secretarias, diretorias e departamentos no decorrer do ano de 2025. A medida impactou diretamente setores como a cultura da cidade e virou notícia nos principais meios de comunicação do Estado.

O motivo da contenção de gastos se dá devido à prorrogação do decreto de calamidade pública no município por mais seis meses, assinada pelo prefeito eleito Gustavo Finck (PP). A medida segue uma lei aprovada em outubro do ano passado, de autoria do próprio Finck enquanto vereador (cargo que exerceu até o fim de 2024), que proíbe a realização de festividades com recursos públicos durante a vigência de decretos de emergência ou calamidade.

Inicialmente o impacto da não realização de atividades culturais por meio de verba da prefeitura afetou o Carnaval de Novo Hamburgo, que com suas duas tradicionais escolas de samba, Cruzeiro do Sul e Protegidos da Princesa Isabel, viu 60 anos de história carnavalesca cessadas pela administração pública. A história do Carnaval no município é marcada pela luta do movimento negro em território associado à imigração alemã, visto que a escola de samba Cruzeiro do Sul, fundada em 1922, teve sua criação justamente porque os negros não podiam frequentar a Sociedade Ginástica. Ou seja, além de celebrar o samba, a escola tem sua história de 102 anos marcada pela busca da expressão de todos, além de desenvolver projetos sociais em sua sede buscando inserir crianças em vulnerabilidade social em atividades sobre a história do povo negro e do Carnaval.

O corte no segmento cultural também afetou a Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo (OSNH), grupo que atuava na cidade há 72 anos, com polos de formação de jovens músicos, e acabou por anunciar o encerramento das atividades após o repasse de R$ 1,2 milhão ser cancelado pela atual gestão municipal. No início de junho, a administração municipal emitiu uma nota na qual afirma ter chegado a um acordo com representantes do Instituto Arlindo Ruggeri (responsável pela gestão da OSNH), sob a mediação do Ministério Público. Foram definidos repasses mensais até o final do ano, além da criação de uma comissão de planejamento que atuará neste segundo semestre com o objetivo de estudar alternativas de manutenção e sustentabilidade da orquestra, incluindo a captação de recursos por meio das leis de incentivo à cultura.

No primeiro semestre, no entanto, o impacto da cessão de repasses no Carnaval e na orquestra foi profundo.

Com 72 anos de trajetória, a OSNH é patrimônio histórico, artístico e cultural de Novo Hamburgo (Foto: Divulgação/Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo)

A OSNH, formada por 34 músicos, era mantida por meio de uma parceria renovada anualmente. Com uma nova gestão municipal, a orquestra viu a parceria ser adiada, até que, no dia 14 de março, seu maestro e diretor, Gustavo Müller, foi surpreendido por um e-mail enviado pelo secretário de cultura de Novo Hamburgo, Angelo Reinheimer, comunicando o fim da união entre a prefeitura e o grupo musical, alegando que o município estava enfrentando uma dificuldade financeira herdada da antiga gestão.

Müller reforça que a orquestra, que está completando 73 anos neste mês de junho, nunca teve suas atividades paralisadas como desta vez e frisa que a OSNH é tombada como patrimônio histórico, artístico e cultural do município desde 2008. Segundo ele, que todos receberam com surpresa o comunicado: “Fomos surpreendidos pela falta de compromisso da gestão em manter este bem tombado que faz parte da história cultural de Novo Hamburgo, como uma das mais antigas manifestações culturais da cidade e uma das mais antigas orquestras do RS e do Brasil com atividades ininterruptas.”

Para reverter o cenário atual e tentar não cessar a história do tradicional grupo, Gustavo ressalta que encontrou apoio vindo da comunidade hamburguense em angariar fundos, além de buscar ajuda através de parcerias: “Estamos buscando parceiros diretos e também através de projetos através de lei de incentivo, tanto federal quanto estadual. Entendemos que os projetos incentivados podem potencializar a atuação da orquestra e, quem sabe, num sucesso de captação, comprometer menos o orçamento municipal.”

Comunidade mobilizada pela orquestra

Em suas redes sociais, a OSNH divulga o trabalho e as iniciativas sociais, além de buscar apoio da população para assinatura da petição online (Foto: Divulgação/Instagram Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo)

Para mobilizar a comunidade, o Instituto Arlindo Ruggeri criou uma petição online que, até o fechamento desta reportagem, contava com mais de 20 mil assinaturas, com a finalidade de manter as apresentações da Orquestra de Sopro de Novo Hamburgo. O documento está disponível em change.org/p/vamos-salvar-a-osnh.

Vale ressaltar que, além da sua atuação como orquestra de sopros, a história da OSNH vai além da sua função artística, mas constitui um projeto social, onde atende a cerca de 400 crianças e suas famílias, promovendo, através da música a inclusão social, cidadania, disciplina e autoestima.

Decreto provocou o cancelamento do Carnaval

Foto histórica do início da trajetória da Sociedade Cruzeiro do Sul (Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal Sociedade Cruzeiro do Sul)

O decreto de calamidade pública, que veta a realização de festividades com recursos públicos, afetou também outro pilar cultural importante da cidade, o Carnaval. A escola de samba Sociedade Cruzeiro do Sul foi surpreendida com a medida, que resultou no cancelamento dos desfiles tradicionais na cidade.

A direção da escola contesta a medida do prefeito, ressaltando que o cancelamento do repasse de verbas comprometeu 75% de alegorias e fantasias e o próprio pagamento de funcionários da escola. Tudo teve de ser compensado pela própria agremiação carnavalesca.

No ano de 2024 a Escola de Samba Sociedade Cruzeiro do Sul participou dos desfiles realizado no município de Novo Hamburgo/RS. (Foto: Divulgação/Assessoria Sociedade Cruzeiro do Sul)

Vale destacar que a Cruzeiro do Sul é o primeiro clube social negro da região do Vale dos Sinos e é responsável por realizar diversas atividades seja no âmbito do esporte e do samba. A agremiação é responsável por eventos e projetos culturais como sarais, oficinas de canto e percussão, mostras de diversidade e festivais, entre outros, iniciativas que visam a ilustrar e a destacar a cultura negra e sua importância para a população.

O que diz a prefeitura

Consultada sobre o caso, a prefeitura de Novo Hamburgo responde que: “É equivocado dizer que a redução da disponibilidade de recursos se deu principalmente para setores da cultura, visto que todas as secretarias estão passando por contingenciamento este ano. Conforme já foi publicizado, o contingenciamento deve chegar a 25% em todas as pastas da administração municipal”.

A Secretaria de Cultura ressalta que mantém seus programas ativos e seus espaços abertos em pleno funcionamento. A pasta menciona locais como o Espaço CEU das Artes, a Casa das Artes, o Espaço Albano Hartz e a Casa Dalilla. Também relata que o restauro da Casa da Lomba está em andamento: “No início do mês de abril, foram empenhados os recursos referentes à contrapartida da prefeitura no valor de R$ 908.325,01 que garantem a conclusão da obra”.

A secretaria ressalta que foi aberto o processo de licitação, já com recursos garantidos, para a aquisição do novo elevador de acessibilidade do Teatro Paschoal Carlos Magno, que está sem o equipamento há quase dois anos. Também informa que os processos de tombamento de imóveis históricos estão sendo concluídos e decretados, citando o prédio do Grêmio Sindicato dos Funcionários Municipais e o Casarão Friedrich, e que a secretaria “segue em busca de recursos federais para melhorias e manutenções da Biblioteca Pública Municipal, da Casa das Artes, do Teatro Paschoal Carlos Magno, do Arquivo Público Municipal e o Espaço CEU das Artes”, além de enfatizar a busca de investimentos externos ao poder público municipal para essas demandas. “Quanto aos três Núcleos de Orquestras Jovens que antes eram subvencionados pela pasta da Cultura”, esclarece, “agora passam a ser atendidos pela Secretaria Municipal de Educação, garantindo continuidade ao projeto”.

Em nota enviada à imprensa no início deste mês de junho, a secretaria detalhou o acordo entre a prefeitura e representantes do Instituto Arlindo Ruggeri. Segudo a nota, serão realizados repasses mensais ao instituto até o final do ano, no valor total de R$ 478.370,00. Nesse período, a comissão de planejamento a ser implementada deve elaborar um plano para a manutenção e a sustentabilidade da orquestra no período subsequente.

As atividades encerradas devido à falta de recursos

Inicialmente, o que se via apenas como um cessamento de repasse de valores para importantes entidades culturais da cidade hamburguense demonstrou um lado mais preocupante: uma pausa no desenvolvimento da cultura da cidade, em projetos sociais e na valorização de profissionais que buscam diariamente contribuir para novas vivências de crianças, adolescentes e adultos em situação de vulnerabilidade social.

É o caso do projeto social Núcleo de Orquestras Jovens, da OSNH, que oferece formação musical gratuita para crianças e jovens da rede pública de ensino. A iniciativa, que contribui para a apresentação e a formação de músicos, teve suas ações totalmente interrompidas.

Por sua vez, a Sociedade Cruzeiro do Sul, que estima atrair mil visitantes por mês em sua sede no bairro Primavera, teve suas ações prejudicadas. A escola enxerga o Carnaval como um período destinado a oferecer à população de forma geral, especialmente àqueles que não vivenciam o dia a dia da agremiação, uma oportunidade de conhecer uma cultura que faz parte de sua formação e que, muitas vezes, permanece desconhecida no seu dia a dia.

Agremiação Sociedade Cruzeiro do Sul reúne grande público mensalmente para conhecer sua trajetória inserida culturalmente na história do samba e no Vale dos Sinos (Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal Sociedade Cruzeiro do Sul)

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